
Este é um povo que sempre viveu nos rigores da altitude, dos climas definidos e incontornáveis.
É assim nos Andes, nos Himalaias, no Atlas, e em todas as grandes cadeias montanhosas. Pessoas com uma capacidade de trabalho impressionante. Viajando de autocarro pelo Peru, é frequente encontrar-se casais de pessoas já idosas, acompanhados pelas suas enxadas, catanas, e grandes sacos de sementes, descendo nos sítios mais improváveis, campos no meio de montanhas sem horizonte de área habitada num raio inarrável, e ali passam o dia, quem sabe a noite, talvez semanas, até voltarem a casa com esperança de que este ano haja uma boa colheita “por altura do Domingo de Ramos”.
Os carregadores são desta “raça”, homens e adolescentes para quem a montanha significa os únicos horizontes possíveis, a fonte de subsistência, o retiro espiritual, o sacrifício diário.
No Peru a maior parte da população do interior vive da agricultura. O turismo em ascensão que despoletou nos últimos anos uma economia quase paralela, alicia estes homens para o dinheiro “fácil”. Mas de “fácil” não tem nada.
Numa zona dos Andes em que as montanhas se sobrepõem umas às outras a civilização Inca ousou calcetar vias, construir povoações, cidades. Mas a maioria dos caminhos são intransitáveis, só pernas comandadas por cérebros atentos podem ali circular, nem mulas de carga desafiam os empinados degraus escaladores das alturas, que à primeira vista parecem mais socalcos que escadas.
O trabalho dos carregadores é levar cargas a rondar os 40 quilos, embora possam ser mais, se conseguirem, ou menos, tudo equilibrado e medido por quem os contrata, numa análise que tem em conta o que conseguem suportar de peso e a velocidade que conseguem caminhar com essa carga.
Os incas tinham um conceito cíclico de História. Em cada nova mudança de poder a que chamavam “pachakuti” (numa tradução bastante literal – viragem no tempo e no espaço) reescreviam o passado.
Nesse aspecto, nada mudou então, tudo se reescreve, a mobilidade das pessoas e dos seus pertences continua a realizar-se como há 500 anos atrás, nas costas curvadas dos carregadores.
Na verdade, embora o nome os honre, não é o mais justo, pois estes homens além de levarem todo um acampamento ás costas (que inclui tendas, bancos desmontáveis, uma tenda maior que serve de sala para refeições e espaço de convívio, toda a comida e a loiça), montam tudo isto e fazem trabalho de garçons. É todo um papel que cumprem em silêncio e com descrição.
Lá em cima já se avistam novas nuvens que chegam em colunas horizontais tornando a paisagem menos ampla, mas sem dúvida mais mística, e por entre elas, os outros dois carregadores que trazem as maiores cargas, descendo aos saltinhos, mais seguros das suas forças do que a sua aparência magra sugere. Quando chegam à zona de acampamento já o chá de coca, conhecido pelas propriedades benéficas aos sintomas da altitude, está pronto.
Juntam-se os quatro, e apenas se ouvem respirações aceleradas. Os copos são distribuídos por todos, o silêncio e esgotamento são dispersados pelo vapor que sai do chá acabado de ferver.
Alguém passa e cumprimenta Carlos com um gesto de cabeça.
Este sorri com doçura, sopra ligeiramente para afastar as folhas que flutuam à superfície do copo de plástico. Sorve um pouco.
A infusão termina num instante, é altura de continuar o trabalho. Agora é necessário montar as tendas, incluindo a do cozinheiro que está prestes a chegar e pouco depois começará a confeccionar o almoço.
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