Bolívia, Cordillera Real, 2012 |
Raquel Ochoa
34 anos, publicou duas biografias e três romances, um dos quais distinguido com prémio literário
revelação Agustina-Bessa-Luís, mas começou por escrever uma crónica de viagens
“O Vento dos Outros”. Chama-lhe “língua-mãe” e o seu percurso
explica porquê.
Mundo aos goles (pouco)
espaçados
Agosto de 1999
Percorrer a Europa para fugir dela, já havia
pressa de compreender o que consistia o além, sondar o transcontinental, e por
isso, com três amigos, o interrail tinha a Capadócia em mente, passando por Itália,
ilhas gregas, entrada por Ankara e longos percursos de autocarro até ao casario
de cavernas, a paisagem de deserto esculpido.
Agosto de 2000
Foi tão grande o impacto da primeira viagem
que logo se criou nova oportunidade de partir. Desta vez, outro interrail, sem
companhia a maior parte do tempo, pelas ilhas croatas, ao longo da Europa do
Leste, Alemanha e Holanda. Viajar só com a mochila, um caderno e dois livros
foi tão ou mais importante do que a licenciatura de Direito. Houve a descoberta
de um limite. Nas montanhas Tatra na Polónia soube o que é afinal a solidão. A
solidão sinónimo de beco sem saída. Por saber como é e como se chega ali, nunca
mais me visitou. Talvez uma das maiores conquistas da minha vida.
Março de 2001
Primeira viagem à Índia. Há sempre uma enorme
dificuldade em descrever a Índia porque é falar de um território longínquo que
todos levamos cá dentro.
Além de Damão e Goa, viajei com uma amiga
indo-portuguesa até Kanyakumari, o ponto extremo sul. A disponibilidade dos vinte
e um anos constatou que todos somos mágicos se entendermos que a bondade é uma
arma. É uma terra onde a energia que nos rodeia deixa uma impressão táctil. A
Índia serviu para recalcular o que já havia aprendido e assimilado. Nada é
definitivo e derradeiro.
Setembro de 2002
Segunda viagem à Índia.
Insisto. A Índia é gigante. Havia tudo para a
aprender e desta vez, com outra amiga, além de Goa e Damão, percorro o norte
com a fúria de me embrenhar nas montanhas. Rajasthan vai ficando para trás na
direcção do Nepal, um dos melhores países que este mundo nos oferece. Por cada
estado que passo, o reconhecimento de um país diferente, com a sua língua
(dialecto), seus trajes, seu tom de pele, seus costumes. Um comboio parado à
força na linha e apedrejado enquanto dormia uma sesta foi uma das múltiplas
peripécias. A Índia começa, neste encontro, a revelar a sua faceta violenta,
convulsiva, injusta para tantos. O ideal seria pensar com o coração e sentir
com o cérebro, vou constatando ao longo dos quilómetros. Ao chegar ao Nepal, os
Himalaias revelam-se muito mais imensos do que o imaginário permitia. Por
Pokara subi até Poon Hill. Dali, dos seus 3200 metros de
altitude, prometo: se Deus me deu pernas, foi para vos subir.
“E se o mundo, penso, só existisse para eu o
conhecer? E se a mente for afinal o maior abismo, o maior mistério, e o globo
apenas o cenário requintado e acessível para, aos poucos, a ir domando?”
Setembro de 2004
Primeira viagem à América do Sul.
Acabo o curso e decido ir respirar.
Costa Rica como porta de entrada, o país da
maior biodiversidade é um enxame de ruídos, animais, florestas independentes,
vulcões a dormir e a fulgurar. Conheço índios verdadeiros que viajaram pela
Europa durante anos e americanos que emigraram para aqui por não aguentarem o
sistema de leis dos Estados Unidos.
Um mês depois, voo para o Peru. Tenho um mapa
completíssimo e traço uma linha por sobre os Andes. Deste modo evito a rota
mais frequentada para chegar a Cusco.
Dias e dias de montanhas mareadas, umbigos do
mundo que hoje em dia, mesmo tendo lá andado, nem acredito como possam ser
habitados. Gente a sair de autocarros com enxadas e picaretas, sacos de
sementes e uma vida de trabalho. Uma leve aflição por estar no meio de um
oceano de montes, descendo e subindo a pique todos os caminhos. Os quilómetros
aqui eram gargantas sucessivas, dragões quietos amarelados, encimados por cumes
de neve a expulsar nevoeiros.
De Cusco atiro-me a Machu Pichu que depois do
caminho inca me recebe de braços abertos. Ali pertenço, estranha e solidária
sensação com os milhares de visitantes daquele dia, creio que acontece a todos.
Arequipa e Lago Titicaca para a despedida.
Entro no Chile pelo Norte, e atravesso o
Deserto do Atacama sempre por terra. Das doze regiões do Chile, estive em nove,
até lá abaixo, o país a desfilar nas vitrinas do autocarro. Um mês e três semanas
a perceber a originalidade das gentes encravadas entre os Andes e o Pacífico.
Trago no bolso areia do deserto mais seco do mundo, fotografias de cidades como
Coquimbo e Valparaíso e músculos nas pernas de caminhadas na Patagónia. Os
olhos, e as emoções, esbugalham-se. Contabilizo mais algumas lições, tal como a
procura só vale a pena se formos corajosos na espera.
Argentina, mi amor. Há portugueses por todo o
lado, na Terra com nome de Fogo e em Ushuaia, extremo austral do mundo,
encontro-os.
No meu diário de bordo, já com uma América às
costas, escrevo:
“O fim do mundo é o que tu quiseres. É uma
cidade ou uma vila, uma aldeia ou três casas.(…)
Tem árvores tortas, dobradas ou arrancadas
pelo vento. O fim do mundo essencialmente tem vento. Que nunca é discreto,
nunca é sopro, nunca é brisa. É uma besta, um cabo Adamastor só de ouvido, um
louco transeunte que grita tudo o que diz, tudo o que as pessoas não querem
saber e, disfarçando, fingem não o ouvir nem o ver. (…)
No fim do mundo sente-se que se chegou longe,
mas que afinal não era tão longe assim.”
Ainda vou a Buenos Aires, Cataratas de Iguaçu
e Florianópolis para finalizar o périplo de seis meses.
Regresso a casa como se tivessem passado três
dias.
Novembro de 2006
Brasil, Florianópolis
A última viagem afinal não estava acabada.
Havia um livro para escrever sobre ela e pessoas a rever. Passo aqui dois meses
a acabar “O Vento dos Outros”. Compreendo afinal porque escrever um livro é
mencionado como uma das mais importantes experiências da existência. Mudou-me a
percepção do tempo, eliminou-me conflitos internos, senti-me útil como poucas
vezes. Tinha esta surpresa no caminho. As palavras afinal não eram deusas a
guardar nos cadernos de memórias. Viajar afinal não era um prazer solitário,
até egoísta. Era a catapulta para a escrita. Ao escrever um, acenderam-se dez
livros em mim.
Março de 2006
Cabo Verde
A enseada perfeita. Motivada a escrever a
biografia de Bana, por lá andei a tentar compreender a alma crioula.
Agosto de 2006
Buenos Aires
Viver como os porteños durante alguns meses. A cidade alia charme e loucura.
Quanto mais diferente é um povo, melhor entendo o nosso. Aqui escrevo boa parte
de “Bana – Uma Vida a Cantar Cabo Verde”.
Março de 2007
Índia e Nepal outra vez.
Goa, Damão e Diu. Finalmente completo a
trilogia. Passo algum tempo a investigar para o meu próximo livro. Chegara o
momento de me aventurar num primeiro romance. E outros dois meses entregues ao
percorrer do norte oriental da Índia. Varanasi para estimular a circulação
sanguínea, por se afigurar tão forte e impressionante. Sikkim, o Estado dos
Himalaias tropicais, predominantemente budista impõe a permanência de um mês
inteiro. Atravesso a fronteira e de novo encontro-me no Nepal. Tempo de cumprir
promessas. De Jiri a Kala Patar, 21 dias a caminhar pelo maciço central do
Everest, até o ver de frente, com os pés fincados a 5545 metros de
altitude. Este momento sabe a conquista e a privilégio, doem os pulmões e a
cabeça, vê-se a montanha mais alta do mundo com definição HD e no entanto é
difícil de acreditar que se está mesmo aqui. É como se uma imunidade nos
escolhesse e ao mesmo tempo um condão para compreender a pequenez do indivíduo.
Dezembro de 2009
A Índia em Portugal.
Chega a notícia de ser “A Casa-Comboio” o
vencedor do prémio literário revelação Agustina-Bessa Luís, o acontecimento
mais marcante desde que decidira escrever, acontecesse o que acontecesse.
Setembro de 2011
Seis meses pela Ásia e Oceânia
Singapura no seu desfile de impecável
organização, asseio e luzes abre o trem de aterragem. Malásia e a obrigatória
Malaca, de seguida Bali que ainda conserva alguns recantos pitorescos mas não
passa de um paraíso que vendeu a alma ao diabo, há muitos anos. A velha máxima:
quando os ocidentais descobrem o paraíso deixa de o ser. Sidney e Melbourne
para me reformular por completo o conceito de cidade (de e para pessoas). Nova
Zelândia, as duas ilhas calcorreadas, imitando um batedor. Um país três vezes maior
que Portugal habitado por quatro milhões de habitantes. A cada quilómetro
espanta um pouco mais. Os antípodas e a costumeira atracção pelos confins transmitem-me
uma cómica satisfação pessoal, o de “saber” de que tamanho falamos quando
falamos de “meio mundo”.
Hong Kong e Macau para de novo fazer vénia a
prodígios civilizacionais. Abrandei o ritmo na Índia onde apresentei “A
Casa-Comboio” a convite do Instituto Camões e fui espreitar dois estados que
não conhecia.
O Sri Lanka surge no final da viagem. Ainda há
sítios com a possibilidade de nos colocarem nas mãos todas as possibilidades.
Parto sempre com um íntimo desejo, o vício da
volúpia do conhecimento.
Regresso confirmando uma impressão com a qual
muitos concordarão. Vagabundear é obrigação do Homem, se quer ser feliz.
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