Quem opta por chegar a Machu Pichu através do caminho inca, num trekking de três dias, cede muitas vezes a passagem a homens que levam tudo às costas. Correm em vez de andarem e transportam cargas à primeira vista impossíveis de suportar. São os carregadores dos Andes.
A bruma aparece subitamente. Nada a fazia prever num céu descoberto e de um azul total até há cinco minutos atrás. Muito menos que as montanhas aqui em frente iam desaparecer do campo de visão.
“Porter!!”- ouve-se gritar com força. É a palavra-passe que todos os turistas entendem e significa a obrigação de dar passagem a alguém que aí vem carregando o dobro da carga, caminhando ao dobro da velocidade. Carlos, Francisco, Sábio e Pepe são uma equipa de carregadores formada para levar a cabo mais um trekking nos Andes. As suas idades variam entre os 39 e os13 anos. São oito os estrangeiros que vão acompanhar desta vez, a maioria da Europa, uma mexicana e um chileno.
Os quatro já caminham lestamente em fila indiana. Acabaram de amarrar tudo o que lhes incumbiram para o seguinte destino, e embora aquele grupo de turistas tenha saído com uma hora de avanço, cruzam-se neste momento. A um bom carregador não se exige só força para suportar o peso. Terá também de caminhar velozmente. O objectivo é que o próximo acampamento esteja montado quando se der a chegada deste grupo que agora lhes desimpede o trilho. As montanhas parecem maiores com o início da queda de chuva cinzenta, é miudinha, mas torna todo o caminho mais deslizante. É a primeira regra do alpinismo: é mais fácil subir que descer, e também aqui se aplica.
Carlos Vasquez tem 20 anos, vive nos arredores de Cuzco, e depois da morte da mãe aos 15, deixou a escola para trabalhar.
Há cinco anos que o seu quotidiano é feito de idas e vindas a Machu Pichu, chegando até lá perto com tudo o que lhe é requisitado transportar nas costas e mãos, e saindo em direcção a casa com o precioso, mas muito mais levem, punhado de soles, a moeda peruana. Soube deste trabalho através de um amigo que o avisou: “O trabalho é muito duro, mas chamam-te sempre.”Carlos tem uma família numerosa, quatro irmãs e um irmão, o seu pai trabalha no campo, lavrando a terra de outros, em troca de algum dinheiro que apenas alimenta a família, não a veste, não a acode se algum problema de saúde surgir, não paga os estudos dos cinco filhos ainda menores. Carlos chega a estar três meses sem ir a casa, trabalhando consecutivamente, na altura em que a afluência de turistas atinge o auge. Normalmente, depois de três dias de intenso trabalho, regressa das montanhas, dorme uma noite numa cama mole a que as suas costas chamam de ortopédica, e parte no dia seguinte, fazendo parte do “staff” de mais um “tour” composto por quatro ou cinco carregadores, um cozinheiro, um guia, e grupos entre os cinco e os 13 turistas.
Carlos parece não dar pelo piso molhado, o início da descida dá-lhe fôlego para saltitar e estugar o passo, quanto mais cedo chegar, mais cedo pousa a carga e descansa.
O seu rosto está marcado pelo frio, numas rosáceas que se tornam ainda mais visíveis com o esforço físico da última subida.
A sua respiração é profunda e concentrada, parece controlar serenamente o pulmão. Não se observando os gémeos a tremer involuntariamente, seria imperceptível o cansaço.
Quando se aproxima de Francisco, companheiro que leva aproximadamente menos dez quilos, embora tenha menos sete anos que Carlos, grita em quechua:
“Já falta pouco para o nosso chá de coca”.
Ventos e brisas imperceptíveis deslocam as nuvens de um lado para o outro, e a paisagem já de si imensa, torna-se inconstante, volátil, recria-se em cada momento.
São os primeiros a chegar ao acampamento onde se volta a reunir todo o grupo, Francisco e Carlos são irmãos, e não só trabalham em conjunto, como o seu salário é para a mesma causa.
Francisco senta-se num degrau, solta um suspiro de alívio, e tira uma alça de cada vez, com os braços magros muito lentos, como se não os sentisse muito bem. O irmão faz o mesmo, desenvencilhando-se da carga com menos cuidado, como se por um momento a odiasse, e a abandonasse convictamente para todo o sempre. Dobra-se para trás de olhos fechados, contorcendo os lábios e transparecendo assim uma coluna dorida. Depois de contrariar uns segundos aquela postura curvada que o acompanhou nas últimas quatro horas, foca a vista no infinito e, sem daí desviar o olhar, dá a ordem ao irmão: “Tira o fogão do saco, vou fazer chá.”
“O Caminho Inca “, como lhe chamam, como se só um existisse, e não imensos, os quase incontáveis caminhos incas, que ligavam toda a América do Sul até ao coração do império, Cuzco, é uma das formas mais usadas para chegar a Machu Pichu. Só o comboio e uma linha férrea lindíssima, que serpenteia romanticamente uma infindável paisagem de montanhas verdes, leva maior número de pessoas. Esse percurso é quase claustrofóbico, ao início segue lado a lado com uma pequena corrente de água, passando de seguida a estar confinado à margem do Rio Urubamba e aos montes que o vigiam.
A grande vantagem de fazer o caminho inca, o que implica três dias a caminhar por altitudes que chegam aos 4200 metros, (e as mesmas noites a acampar sob o som e contacto da chuva, além de todo um passeio andino fascinante), é a visão de 30 minutos ou menos às 6 horas da manhã. Nessa altura, com o amanhecer, o santuário arqueológico permanece intocável por humanos, uma cidade só habitada por memórias, aves de grande porte e lamas.
Esta visão é possível da “Puerta del Sol”(Intipunku), e para os amantes das coisas como elas eram, constitui, sem dúvida, a única forma de contemplar Machu Pichu - o sítio mais visitado da América do Sul - sem as costumeiras centenas de turistas.
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