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Sikkim em troca do Tibete




Rumtek é uma fiel réplica das instalações de Kagyud, no Tibete. Muitos dos fiéis são tibetanos. Muitos dos tibetanos encontraram em Sikkim o início de uma nova vida, bem mais próxima da antiga realidade do seu país do que a actual realidade da colonização chinesa. O Namgyal Institute of Tibetology, por exemplo, é um prestigiado centro de tibetologia com uma rara colecção de manuscritos sânscritos, tibetanos e lepchas onde se podem observar mais de 200 objectos de arte budista que encantam os visitantes.
Em 1947, uma consulta ao povo teve como resultado a decisão de Sikkim não se juntar à União Indiana, recentemente tornada independente da Grã-bretanha, pelo que o primeiro ministro Jawaharlal Nehru concordou que Sikkim seria um protectorado com um estatuto especial. Em 1973, motins em frente ao Palácio Presidencial pediam protecção formal à Índia, descontentes com as opções do Chogyal (líder político) e em Abril de 1975, através de um referendo que obteve 97,5% das votações a favor, Sikkim passou a ser o 22º estado da Índia, abolindo-se a monarquia.
Pela sua localização geográfica Sikkim, é um terreno propício a receber os efeitos colaterais de dois gigantes que exercem pressões a vários níveis, mais cedo ou mais tarde, por motivos políticos ou económicos, uma opção tinha de ser tomada. A China vive em 2000 um episódio incómodo a quando da fuga inesperada e desesperada do Lama Karmapa Urgyen Trinley Dorje (proclamado Lama pela China) para o mosteiro de Rumtek, uma vez que o ainda não havia sido oficialmente reconhecido pela China que Sikkim fazia parte da Índia. Tal só veio a acontecer em 2003 quando o acordo é assinado entre as duas potências no qual a China reconhecia que Sikkim era território indiano e a Índia reconhecia que o Tibete era território chinês.

Para chegar ao Tsombo lake, outro local de visita obrigatória, além de conseguir uma série de novas papeladas carimbadas é necessário percorrer uma estrada que desafia o desfiladeiro, conhecida como uma das mais altas estradas circuláveis do mundo, com pontes que também batem recordes, onde se observam anéis de nuvens roçando as montanhas em forma de torres. A presença militar é intensa e constante e os anúncios em cartazes amarelos escritos a tinta verde enunciam as mais variadas mensagens, políticas, espirituais ou sócio-económicas. Uma delas podia ler-se em inglês: “Quantas pessoas calcula que morreram na construção desta estrada para você aqui poder passar hoje.” Outro enunciava: “De Caxemira a Kanyakumari (ponto mais a sul do país) Índia é uma só.”
O lago, a 3780 metros de altitude, é apenas a 18 quilómetros da fronteira com o Tibete. Mantém-se mais tranquilo que a base militar, só as gotas de chuva o agitam, não há sinal de vento, nem as montanhas que o rodeiam podem ser avistadas através do nevoeiro. São expressamente proibidas as passagens de turistas para o lado nordeste do lago, soldados controlam todos os passos com as metralhadoras penduradas ao regaço. Dá a ideia que até a paz desta paisagem alpina é controlada por eles. Yaks povoam a paisagem, carregando pacientemente turistas indianos do sul. O pêlo abundante dá-lhes um ar de golden trevier gigantes. Talvez tenham assistido à origem do lago que, segundo as crenças budistas foi sobrenaturalmente trazido para aqui da região Laten.
A descida até Gagtok ainda possibilita uma visita ao Enchey Monastery, mais um festival de cores, com os arredores de colégios construídos para abrigar centenas de garotos de cabeça rapada e sem qualquer expressão decifrável. É impressionante observar crianças que não demonstram sinal algum de curiosidade, apenas dedicados a estudar a natureza da alma e para quem o estado último será chegar à iluminação. Conseguirão? Em contrapartida, o interior do templo é um convite à infância, os cenários de natureza recriam lições religiosas com criaturas espampanantes, como se se tratasse de um convite a ler uma banda desenhada.
Himalayan Zoological Park, é uma espécie de reserva natural onde se podem observar raros animais da fauna himalaia, tais como o panda vermelho, os lobos brancos, o leopardo das neves himalaias e ainda o urso negro himalaia. Como o panfleto-mapa que é distribuído à entrada avisa, “venha com muito tempo e paciência” é necessário esperar bastante para que os animais se coloquem em pontos visíveis para os visitantes, mas sobra o consolo de saber que terão uma vida aproximada do que seria o ideal selvagem.
Falta visitar muitos outros locais interessantes, Rinchepong, por exemplo, local de onde se pode avistar os vários picos do Khangchendzonga (8586 metros de altitude), a terceira maior montanha do mundo com o amanhecer. Para pernoitar só há dois alojamentos à escolha. As varandas são bonitas, mas atraem borboletas gigantes, com cerca de 15 centímetros, de cor castanha e alaranjada que tentam entrar para o quarto.
De manhã, com os primeiros raios de luz a paisagem aumenta até aos picos brancos em forma de muralha, a cordilheira deixa-se avistar por pouco tempo, mas vale a pena olhar, mesmo que poucos segundos, para tal espectáculo.
A saída de Rinchepong não é fácil. Os costumeiros jipes-táxis já partiram todos às 6 horas da manhã. O dono de uma mercearia sabe que o cunhado vem entregar umas mercadorias, se houver perseverança em esperar talvez seja possível uma boleia. Quatro canecas de “Chai” depois (chá com leite e especiarias) chega a ansiada boleia que pode fazer o transporte até Yuksom. Pelo caminho avistam-se bandos de crianças com as suas mochilas, dirigem-se para a escola, os irmãos ou vizinhos de 6 anos, cuidam dos de 3 ou 4, fazem quatro ou cinco quilómetros por dia, sem qualquer sentimento de insegurança. A paisagem até Yuksom, no oeste de Sikkim é verdejante. Os trilhos são muito procurados por turistas caminhantes mas oferecem alguns perigos, nomeadamente as sanguessugas que costumam aparecer junto às zonas com lagos e conseguem trepar pelo corpo humano chupando o sangue que as deixarem. É o que acontece a um grupo de ingleses que começa por as arrancar com algum esforço e algumas gargalhadas, mas que pouco depois têm de correr ao hotel para se examinarem sem roupas e tentarem erradicar todas sem excepção, o que não é fácil devido à sua extrema resistência.
A vida nestas montanhas e vales vai subindo e descendo, ao sabor da geografia acidentada. Um dos locais mais recônditos do mundo é também um orgulhoso reino que surpreende com as suas histórias e inventa novas entradas para os Himalaias.

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