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Sikkim - O escondido Reino Himalaia


Os vistos e permissões são carimbados em Siliguri, a entrada no 22º Estado da Índia está assegurada. O segundo estado mais pequeno e o menos populoso está encostado ao Tibete (administrado pela China), ao Nepal e ao Butão e a sua história é de invasões e tratados de paz, Budismo e Hinduísmo que à mistura se foram adaptando às encostas escarpadas e profundos vales neste recanto de Himalaias tropicais.
O clima oscila entre temperado, tropical e alpino, uma vez que a altitude varia entre os 280 metros e os 8590, mas Sikkim é diverso em vários outros aspectos, a população reparte-se entre lepchas, bhutias, e nepaleses, o que, culturalmente, triplica o interesse da região, sobretudo por conviverem pacificamente. Residem outras comunidades de emigrantes, nomeadamente tibetanos, sobretudo no Norte e no Oeste do Estado.
O autocarro apinhado dirige-se a Gangtok, as sucessivas paragens devem-se aos desvios improvisados que escapam aos destroços das enxurradas da estação das chuvas que lamberam vários troços da estrada que agora se recupera vagarosamente. Ninguém se preocupa com os precipícios e há quem durma apoiado ao braço, estirado firmemente e agarrado ao manípulo suspenso no tecto do autocarro.
Gangtok, além de capital e cidade mais populosa, também se confunde com um desmesurado miradouro, bem aproveitado através de uma linha de teleféricos que balouçam junto às nuvens e espreitam para os cumes mais altos disfarçados pela neblina. É uma cidade em escalões, rodopiada por jipes pujantes e automóveis que a sobem e descem, espectacularmente edificada por prédios simples de três ou quatro andares, apoiados uns aos outros como peças de puzzles da engenharia. Vêem-se transeuntes com pressa e sem ela, mas é na avenida principal, que a partir das 17 horas se transforma numa enorme via pedonal que se reencontram os compadres e as comadres, os jovens e os velhos, os monges e os leigos, os comerciantes e os consumidores. As etnias confundem-se, não se está na Índia nem na China, não é Tibete nem o Nepal. Os números indicam que 60% da população é hindu, 30% é budista e 7% é cristã, sobretudo os lepchas convertidos pelos ingleses quando exerciam influência nesta zona antes da independência da Índia em 1947. Uma estátua de Nossa Senhora dá as boas vindas aos crentes na fachada principal da sua igreja enquanto os miradouros da cidade estão preenchidos com orações de quadrados de pano, uma colorida demonstração de fé budista. O Budismo foi introduzido no séc. XV e aparentemente é a religião predominante. Os seus muitos e antigos mosteiros espalhados pelo estado são a prova terrena disso mesmo. Intercalam-se os vestuários, os prazeres culinários, os festivais religiosos que cada cultura aprimora.
Na paragem dos táxis-jipes podem ser escolhidas várias direcções, basta perguntar quando não há tabuleta. Arranja-se sempre lugar para mais um e os veículos normalmente partem com o tejadilho carregado de materiais de construção ou grandes sacolas amarfanhadas. Dentro do jipe reina o silêncio, mais do que isso, assiste-se a uma certa concentração que do condutor é contagiada para os passageiros, alguns murmúrios ou o som das contas dos terços a tilintar não interrompem a meditação que parece ser o estado normal em que vive aquela gente. Nem o chiar dos travões que permitem atravessar o percurso de curva e contra-curva até ao mosteiro de Rumtek perturbam os passageiros.
À entrada do mosteiro, fileiras de chu mani tengur (orações inscritas num cilindro que com impulso dado pelos crentes rodam sobre o seu eixo) indicam o caminho para o recolhimento. O primeiro portão é vigiado por um guarda e assim que se trespassa a entrada para o átrio dois homens de bastante idade chamam à atenção, agachados num canto, debaixo de um telheiro. Um rapa a cabeça ao outro. Têm trajes de cor açafrão e quase não existe luz para executar a tarefa. O resto do átrio está vazio, de vez em quando passa um estudante de sacola na mão que entra para dentro do mosteiro. Este é um verdadeiro espaço contra a monotonia, já que tanto a sua entrada como o seu interior estão revestidos de pinturas à mão com a conjugação de tantas cores e tantas histórias, tantas personagens e tantos símbolos, tantos deuses e dragões. Cada coluna vermelha e dourada é enfeitada por faixas que pendem do tecto desenhadas com campos floridos. O requinte e pormenorização destas figuras é espelho de um trabalho que sugere séculos de paciência. Os olhos de Buda estão fechados mas concentram as atenções dos presentes: alguns monges e senhoras muito velhas.
Procurando as traseiras do mosteiro, entende-se que ali se estende um complexo de edifícios que estruturam uma universidade: Karma Shri Nalanda Institute, onde se desenvolvem os Estudos Budistas Superiores. Aprendizes debatem serenamente nos jardins, ou manuseiam um livro isoladamente, ou estendem-se ao sol de braços e ombros nus com as vestes vermelhas contrastando com o verde da relva.
Um som surdo mas sonante provém de uma sala interior, é possível entrar, realiza-se uma oração budista, no qual um garoto de cinco ou seis anos lidera o grupo de dez jovens adultos, batendo desajeitadamente num gongo estridente, enquanto os outros entoam um canto perturbador, a uma só voz. Nenhuma explicação é oferecida, nem se vislumbra espaço para colocar questões. Os visitantes devem usufruir dessa sua qualidade, de forma resguardada e sem interferir nas rotinas da universidade.


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