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Andes - Torres del Paine, na ponta sul da cordilheira


A muitos quilómetros dali, não longe da Isla Grande de Tierra del Fuego, o sítio mais a sul do continente, Victor Marquez prepara um café. O pó é retirado de uma embalagem que originalmente foi de chocolate quente, mas este guarda-florestal preveniu-se contra as suas próprias distracções e colou-lhe uma tosca etiqueta com o nome do conteúdo actual. Tudo é demasiado precioso para ser desperdiçado, uma vez que, para estarem ali, foram carregados às costas durante algumas horas, portanto os mantimentos ali existentes são os imprescindíveis.
Victor tem 19 anos, pouca paciência para a escola ou uma imensa paixão pelas duas facetas opostas daquele parque e daqueles montes: o convívio e a solidão. Nasceu em Punta Arenas onde reside nos seus cinco dias de folga, que acontecem a cada 12 dias de trabalho.
Punta Arenas é a maior cidade do extremo sul chileno, e fica a 3 horas de autocarro de Puerto Natales, a cidade mais próxima do Parque Nacional Torres del Paine, um dos parques naturais mais conhecidos do Chile, quiçá de toda a Patagónia.
A cidade em si, além dos apelativos “tours”, pouca cor tem. É um aglomerado de casas, em quadras, o que forma um xadrez perfeito de ruas compridas para quem a veja de cima, e óbvio, sempre à espreita de uma qualquer maravilha natural, um lago, um rio, umas montanhas, um vulcão.
Neste caso, Puerto Natales fixou-se na Península de António Varas, o início de mais um dos milhares de desmembramentos de terra de que todo o sul do Chile é desenhado, a conhecida e improvável paisagem de fiordes. Da ilha de Chiloé para sul parece que o território se fragmenta, milhares de ilhas e canais pouco navegáveis.
De Puerto Natales à entrada de Torres del Paine, ainda é necessária uma viagem de duas horas de autocarro. E da entrada do parque até ao posto que Victor ocupa nesta altura do ano, um dos vários acampamentos para os visitantes, “o acampamento chileno”, serão, num ritmo acelerado, mais umas três horas de caminhada. Por isso, “quando volta a casa”, nas palavras de Victor, ou seja, quando viaja de Punta Arenas para “o acampamento chileno”, nunca serão menos que oito horas de caminho, quilómetros de árvores dobradas pelo vento.
“ O vento é um instrumento de limpeza.” começa Victor quando interrogado sobre o porquê da sua paixão por este parque. “O vento da Patagónia lembra-nos todos os dias que é rei e senhor destas paragens, e que se habitamos a sua inóspita casa é porque sabe dos seus próprios poderes terapêuticos para os humanos.”
Do alto dos seus experientes 19 anos, Victor recebe mais um grupo de turistas caminhantes que chegam para visitar as Torres. São três, altas, bonitas, imponentes, com estrias de cima a baixo, um produto soberbo da erosão. Nascem de um conjunto gigante de rochas e elevam-se verticalmente no céu, desafiando nuvens e condores. Na base de tudo isto, uma lagoa verde-esmeralda, onde o vento brinca na água, fazendo remoinhos tremendos, ao ponto de rodopiar por segundos no ar.
Marquez dá as boas-vindas aos recém-chegados e em cinco minutos elucida-os sobre as regras básicas de convivência com a natureza e com os outros. Depois deixa-os à vontade, e volta para a sua barraca, o frio acentuou-se com o chegar da noite, é necessário atirar mais madeira para dentro do fogão a lenha que mantém acesa desde que se levanta até que todo o acampamento esteja em repouso, entregue aos mochos e à chuva miudinha.
Com a cara ruborizada pelo fogo que aviva no seu fogão, Victor diz brincando, como quem ainda não se sente confortável de dizer coisas sérias com um ar sério: “O vento penetra nas pessoas, limpando-as, aliviando-as dos seus stresses e preocupações que carregam, tão ou mais pesadas que as mochilas imprescindíveis ao trekking que se propõem.”
Victor ri ao dizê-lo, mas os seus lábios e os seus olhos contorcem-se com a dor do calor que sai do fogão, dando-lhe uma aparência de mago incorpóreo, com uma expressividade de muitos mais anos do que os que a vida lhe deu até agora. De solidão não se queixa, desde que lhe foi atribuída a responsabilidade do “acampamento chileno”, que antecipa a subida até ás Torres, convive com pessoas de todas as nacionalidades do mundo.
“Faz uma semana que estive a falar com uma senhora tibetana. Refugiou-se em Inglaterra há dez anos, conheceu um senhor inglês com quem se casou e teve 3 filhos.
Visitavam o parque com 2 dos filhos mais velhos”, ilustra Victor. Além disso, este acampamento está à distância de uma hora de um abrigo de escaladores, um dos mais importantes de toda a América do Sul.
Escalar as Torres del Paine é visto como um dos pontos culminantes da vida de escalador experiente. Victor é o ponto de contacto entre esse acampamento e a administração do parque, uma vez que só a sua cabana está equipada com rádio intercomunicador. “Nesse acampamento vive-se um ambiente muito especial”, relata Victor, “chego a encontrar pessoas que vieram do outro lado do mundo e que têm de esperar duas ou três semanas (ás vezes mais) até encontrarem as condições meteorológicas perfeitas para escalar tamanha extensão de rocha.”
“Todos se divertem e dialogam, mas no fundo existe uma atmosfera de concentração e expectativa naquela gente, que escapa à compreensão de nós humanos”, acrescenta com uma gargalhada no final dos seus olhos circunspectos. Victor explica que um dos maiores prazeres do seu trabalho é observar a reacção das pessoas quando confrontadas com as Torres.
A natureza nem sempre permite observá-las, como se só um grupo restrito as pudesse alcançar realmente, uma vez que, quando um manto espesso de nuvens cobre as Torres, é preciso tocar-lhes para poder acreditar que está ali um dos espectáculos mais visitados de toda a América do Sul.
A expressão de encantamento é uma constante em todo o percurso, um conhecido W, que percorre as Torres, os “Cuernos”, e o “Glaciar Grey”.
As paisagens são todas condimentadas com a intensidade da Patagónia, vivificadas pelo vento, montanhas com forma de Cornos, glaciares que se vão derretendo para um lago cintilante azul-turquesa, originando pedaços de gelo de todas as formas, que ao navegarem ao sol produzem, no mínimo, uma sensação de surrealidade.
Não é difícil de entender portanto o orgulho que os funcionários do Parque têm no ofício. Mas Victor tem planos, quer ser biólogo, por agora está só a ganhar dinheiro no que lhe dá prazer trabalhar. Não sabe quando irá, só sabe que vai. “Voltarei sempre aqui, mas depois de vir de muitos outros lados”, afirma. “E o mais engraçado é que já sei que vou viajar por todo o Chile, se puder outros países da América do Sul, para descobrir o que já sei…que este é um dos sítios mais bonitos do mundo.”
O olhar vivo esconde-se atrás do boné da farda que usa. Risca mais um dia que passou no calendário de trabalho e verifica que faltam dois para voltar a Punta Arenas. Retira o pão quente acabado de fazer e barra-lhe manteiga. Condores sobrevoam a região, e há um silêncio no ar que aguarda a expectativa da desordem de uma nova vaga de vento, que agitará o sono dos que já dormem. A noite cai em vários parques do Chile. Os guardas florestais abrigam-se esperando o dia seguinte de trabalho e auto-superação.

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