Avançar para o conteúdo principal

Ser indiana num país como a Índia



Arambol é uma praia no norte de Goa onde confluem pessoas do mundo inteiro. Nos últimos tempos a procura é maioritariamente russa, o que tem trazido uma fama diferente a Goa, nunca a melhorar, devido a desacatos e episódios violentos.

Aqui, de dia e de noite, as pessoas passeiam-se sem pressas, parece um parque de diversões para personagens inverosímeis. O mexicano com problemas de álcool, o jovem casal português do Cacém que depois de ter emigrado 10 anos em Inglaterra, decididos a voltar a Lisboa, deixam-se ficar mês e meio para evitar o Inverno, o consultor de imagem de um importante político russo que faz oposição a Putin, um casal de ingleses acima dos 50 que se perdeu no tempo e nas drogas, a sueca atraente e atiradiça que se divorciou há menos de um ano e não esconde que procura sexo ocasional, uma jovem grávida de seis meses com o seu companheiro, ambos nórdicos, sem medo de nada, ou o argentino atormentado, arquitecto de hospitais, que anda há ano e meio a viajar porque carrega segredos terríveis que não consegue esconder nem revelar.

É neste ambiente que vale a pena conhecer Beauty uma jovem indiana do Gujarat, com 25 anos, que faz jus ao nome. Pequena, com traços finos, muito elegante, vive aqui há 20.

Usa um sari diferente todos os dias. É muito escura, opta sempre por cores fortes, cor-de-rosa, verde alface, vermelho. É uma mulher eléctrica que sabe a força que leva dentro.

Arambol é uma mistura de muita gente e de muitos estímulos. Há yoga para todos os gostos, várias escolas, várias correntes. Há massagens e medicina ayurveda mas também há cafés Wi-Fi sempre com música apaziguadora e grandes almofadas - cada um se instale como quiser.

Há lixeiras a céu aberto e lixo pelas ruas, mas as pessoas são simpáticas além da comida, boa e barata. As dormidas também. Acima de tudo, em Arambol, as pessoas estão sempre a encontrar-se, a cruzar-se, a combinar qualquer coisa para mais logo.

A noite tem uma oferta considerável de bares e restaurantes e há música ao vivo variada com bastante qualidade, a entrada é livre.

De dia, vacas passeiam pela praia paradisíaca, com inúmeros restaurantes a oferecer camas, sumos e bebidas alcoólicas a quem quiser relaxar. Ali ao lado há um esgoto a céu aberto, mas ninguém parece importar-se.

Com o pôr-do-sol, no fundo da praia, juntam-se mais de dez tocadores de djambés, guitarras, às vezes saxofones, até harmónicas, e toda a gente faz uma roda para dançar, com pouca roupa, indiferentes ao escuro que entretanto cai e nunca acaba a festa.

Beauty não participa destes ajuntamentos. Trabalha das 9h às 23h.

Na sua presença o traço mais significativo é o sorriso, sincero. Aquele sorriso corresponde a todo o seu património, ofusca as outras qualidades destacáveis. Talvez por isso seja boa vendedora.

Beauty casou-se há sete anos, com dezasseis. À primeira vista teve sorte. O jovem, escolhido pelos seus pais, é bem-parecido, são da mesma idade e costuma estar ao seu lado na loja que ela gere - um estabelecimento ambulante na estrada principal de Arambol. Vende chás, especiarias, colares, e grandes lençóis com padrões típicos da Índia, além dos Bob Marleys, Che Guevaras e Marijuanas.

Tem dois filhos, a primeira com seis anos, o segundo com quatro.

Não é do tipo de chamar os turistas para a sua loja, táctica usada e abusada pelos seus vizinhos. Às vezes, o marido está sentado ao seu colo numa cadeira de plástico que mantém à entrada, o que parece uma brincadeira dos dois, ele sentado ao colo dela.

Beauty é inteligente, aprendeu a falar o seu desenrascado inglês com os turistas, nunca foi à escola. Já com alguma confiança e semanas de convívio, conta a sua história.

Antes de se casar, gostava de alguém mas, uma vez estipulado o casamento, nem se atreveu a emitir um som.

Era este o seu destino. “The world is changing, but I still the same” –é como muitas vezes se define. Casaria-se, por respeito aos pais.

Como já têm dois filhos, que eram quantos o casal queria ter, a sua vida sexual acabou.

O marido dorme num colchão, ela na cama. Sabem que são marido e mulher, são uma família, permanecerão juntos para sempre mas nunca mais voltarão a ter intimidade. Não gostam um do outro a esse nível.

Ele vai a Mapussa, a cidade mais próxima, de vez em quando, fica lá uma semana, tem alguém com quem se mantém activo sexualmente.

Beauty, não tem ninguém - como é óbvio para os parâmetros indianos - nem nunca terá. Também não o questiona, só o confessa.

Aliás, tem mais com que se preocupar, tem um negócio para gerir que é o sustento da família. Ele não traz um único tostão para casa, não faz nada, apoia-a na loja, mas qualquer responsabilidade, tal como prestar contas, é ela que dá a cara.

Quando se casou, ela pagou o dote, dinheiro que foi juntando ao longo de alguns anos de bordados em casa, com a mãe.

Beauty não se sente injustiçada, até acha que tem sorte. O marido não faz nada mas trata-a bem. Discutem muitas vezes mas não é homem de violência.

A relação entre as mulheres na Índia tem subtilezas muito difíceis de entender.

“ As mulheres odeiam-se mutuamente. Sei que todas me invejam.” – Fala genericamente mas nota-se que Beauty não concebe ter uma vida melhor, uma sorte melhor – “Para que é que me hei-de preocupar, uma mulher sozinha nunca poderá nada contra os costumes.”

Bebe o seu chai e sorri. Aparentemente é feliz assim.


Comentários

  1. Olá Raquel.
    Viajar é tudo de bom, não é verdade?
    Vou passar a visitar o blog.
    Boas aventuras
    Ruthia
    http://bercodomundo.blogspot.pt

    ResponderEliminar
  2. Adorava participar no seu curso Escrita Criativa: dar a volta ao mundo, mas este fim-de-semana vai ser impossível... Fico à espera que haja um próximo para me inscrever logo!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Perahera - encontrar o maior festival do Sri Lanka

SEE BELOW FOR THE ENGLISH VERSION Perahera Em Kandy é considerado o maior espectáculo e demonstração cultural do país, mas a versão indiscutivelmente menor que me tocou na zona de Aluthgama (talvez um vigésimo da sua dimensão)já deixa uma bela impressão. Sendo um festival budista que celebra o primeiro ensinamento de Buda depois da Iluminação, exibe em procissão uma das suas relíquias. Relaciona-se também com uma outra procissão em tempos considerada essencial para chamar a chuva. Os primeiros rapazes trazem longas cordas castanhas, são chicotes mas mais fazem lembrar um peludo animal comprido. A forma como o projectam no ar produz um som tremendo - sem nos bater, o som chicoteia. Uma vez que não guardam grande distância entre si, não é compreensível como conseguem não se maltratar uns aos outros ou mesmo a assistência acotovelando-se para os ver. Depois desta abertura surge o primeiro elefante. Vestem-no com uma indumentária carregada de electricidade, com luzes o

Jornal de Letras - há algum tempo escrevi a rubrica "Diário" - agora divulgo.

Bolívia, Cordillera Real, 2012 Raquel Ochoa 34 anos, publicou duas biografias e três romances, um dos quais distinguido com prémio literário revelação Agustina-Bessa-Luís, mas começou por escrever uma crónica de viagens “O Vento dos Outros”. Chama-lhe “língua-mãe” e o seu percurso explica porquê. Mundo aos goles (pouco) espaçados Agosto de 1999 Percorrer a Europa para fugir dela, já havia pressa de compreender o que consistia o além, sondar o transcontinental, e por isso, com três amigos, o interrail tinha a Capadócia em mente, passando por Itália, ilhas gregas, entrada por Ankara e longos percursos de autocarro até ao casario de cavernas, a paisagem de deserto esculpido. Agosto de 2000 Foi tão grande o impacto da primeira viagem que logo se criou nova oportunidade de partir. Desta vez, outro interrail, sem companhia a maior parte do tempo, pelas ilhas croatas, ao longo da Europa do Leste, Alemanha e Holanda. Viajar só com a mochila, um caderno e dois livros