(publicado na revista Travel Safaris nº13)
A
história de Angkor preenche centenas de livros e mesmo assim ainda está longe
de estar a descoberto. À semelhança dos seus templos durante séculos devorados
pela selva, assim se mantêm algumas histórias, quiçá as mais interessantes, de
um império que teve a originalidade fundir hinduísmo e budismo.
Talvez
por isso seja para os viajantes uma experiência que não termina com uma
primeira visita. Foi essa a sensação depois de ter andado a percorrer
livremente os templos durante três dias – necessitava de, pelo menos, mais
três.
É
uma viagem de luxo que pode ser vivida com mais ou menos conforto, à escolha.
De seguida conto-vos as minhas para visitar aquele que devia ser um dos
principais destinos de quem se julgue um explorador.
Esta
não é uma crónica acabada, uma narrativa com princípio meio e fim. É uma
tentativa de compreensão porque Angkor é tão extenso e tão viciante.
Angkor
Wat é o nome sonante reconhecido mundialmente. É o maior dos quarenta e oito
templos que se podem visitar só na zona de Angkor, construído para marcar um
antes e um depois nas esplêndidas construções do império kmer. Por isso mesmo
não deve ser visto em primeiro lugar.
Mas
há ainda mais construções e pontos de interesse a visitar noutras zonas, num
raio de cerca de cem quilómetros.
Não,
não é engano tipográfico. São quarenta e oito templos dos quais cerca de 10 são
amontoados de pedras disformes sem interesse para o comum visitante que não
estudioso. Sobram portanto cerca de trinta templos, ou seja, cerca de trinta
aventuras à escolha. Angkor Wat, o maior, demora cerca de três horas a ser
visitado, sem pausas. Os outros rondam em média hora e meia.
A
minha sensação, e creio que a sensação de todas as pessoas que se interessem
por este tipo de viagem cuja descoberta da cultura assenta em vestígios
arqueológicos surpreendentes, era a de acordar de manhã e ser um Indiana Jones
- com a tarefa facilitada, é certo - mas prestes a encontrar um mundo por revelar.
Nos
primeiros séculos da era cristã já havia movimentos comerciais importantes com
a China. Esta era uma região estratégica para controlar as rotas do rio Mekong
e o Golfo da Tailândia. Mas é o seu contacto com a Índia que lhe dá os
primeiros contactos com a cultura hindu e o budismo. É dali que retiram as suas maiores
influências civilizacionais. A partir do século VI começa a agregar-se enquanto
império, embora por longos períodos volte a constituir-se de pequenos estados
separados.
Os
vários imperadores que se sucederam empreenderam uma tarefa magnânima de
construção até ao ano de 910 quando dois irmãos que continuavam a dinastia se
desentendem, um deles muda a capital para Kon Ker, aproximadamente a 100 quilómetros e
onde se podem encontrar outros tantos templos, pirâmides e construções
realmente interessantes. Quando morre, a capital voltou para Angkor. Os
imperadores seguintes até meados do século XIV, quando o império sofreu a
derrocada final, vivem uma autêntica febre arquitectónica, cada um tentando ser
responsável pelos maiores feitos até então, intercalando a obra erguida com a
gestão das várias guerras que assolavam o território.
A
melhor maneira de visitar este enorme complexo de prazer natural e
arqueológico, na minha opinião, é alugar uma bicicleta em Siem Riep , a cidade onde
há alojamento para todos os gostos e feitios. Siem Rep tem interesse pois é uma
daquelas cidades montadas para satisfazer todas as necessidades possíveis e
imaginárias, legais e ilegais.
Há
que referir que o Cambodja é um país até há cerca de quinze anos em guerra. A guerra que
acabou com um dos mais hediondos regimes ditatoriais da história. Milhões de
pessoas foram mortas em apenas sete anos. Por isso Siem Rep, além da circulação
contínua de magotes de turistas é também um ponto de encontro de todas as
marcas de guerra, da pobreza, dos mutilados, da prostituição, tudo se encontra
ali, ao contrário do território edílico dos templos a poucos quilómetros.
Se
alugarem bicicleta, a minha opção de eleição, ficam independentes e podem
pedalar de templo para templo o que pode variar entre os cinco minutos e cerca
de uma hora e meia. Depende das várias zonas que escolherem. A opção muito
frequente é contratar um riquexó e o seu condutor o dia inteiro e com ele ir
saltitando de construção em
construção. Acho realmente mais enfadonho ter alguém à espera
que ao final do dia nos “obriga” a voltar para casa à hora estipulada. A
bicicleta é o único transporte que permite ser totalmente independente. Também
há táxis e autocarros (dezenas de autocarros de chineses) que fazem a tal
excursão organizada aos templos mais procurados. A bicicleta, definitivamente,
proporciona um passeio alegre e sem relógio num dos mais belos parques do
mundo. Recorde-se que é uma zona de cultura de arroz e por isso uma imensa
planície sem subidas nem descidas onde uma simples “pasteleira” permite uma
velocidade constante. A floresta vai desfilando pelos nossos olhos a velocidade
cruzeiro e, de repente, como um cogumelo com quinhentos anos ou mais, surge um
amontoado de pedras antiquíssimo que se ergue altaneiro, qual castelo, mas com
mais pretensões de voo do que de defesa.
Outro
item/conselho é a escolha dos templos. É óbvio que não se pode perder Angkor
Wat ou o Bayon, ou o Angkor Thom ou o Terraço dos Elefantes, são obrigatórios e
sempre teremos de os suportar com os milhares de turistas que naquele mesmo dia
os decidiram partilhar connosco. É provável que daqui a poucos anos Angkor seja
o local mais visitado à face da terra.
Mas
a magia deste local é existirem inúmeros outros templos igualmente (ou quase
tão) surpreendentes onde não chegam as excursões organizados de povos asiáticos
(e não só) que tanto gostam de andar juntinhos às centenas.
Lembro-me
de me deslumbrar no Bakong, no Lolei, no Ta Som, no silêncio do Neak Pean no
meio do lago, ou noutros e ali quase não haver ninguém (leia-se máquinas
fotográficas clicadas de modo ininterrupto).
Há
um convite ao silêncio em todos estes templos que, ao não ser respeitado,
agride os espíritos mais sensíveis. E depois há a estupefacção perante a força
da natureza, a dignidade da natureza, que fez implodir, literalmente, certos
templos, com a força do nascimento de uma semente que se transformou em árvore imperial
a percorrer entranhas de santuários.
Como
nota final há que referir as omnipresentes Upsaras. São espíritos femininos da
mitologia hindu e budista que se erguem enigmaticamente nos templos, caras enormes
esculpidas de olhos fechados e de sorriso constante, um sorriso que vem do
âmago do ser, o sorriso que já se esqueceu o que é o ter ou o estar, só sabe
ser.
Já
atingiram a iluminação e, cúmulo da generosidade, recusam-se a entrar no
“paraíso” para ajudar os que ainda não conseguiram atingir o nirvana. Pairam em
quase todos os templos, bem como nos portais, distinguindo as várias zonas
construídas consoante as épocas, quer inspirando, quer vigiando. Podemos passar
horas de olhos nos olhos com elas (embora sejam sempre representadas de olhos
fechados) e não nos cansamos.
Passados
uns dias a percorrer templos, naquelas paisagens infindas de grandes árvores
que preenchem o horizonte e nos submergem, sem querer, fechamos os olhos e
vemos templos, e vemos árvores, e os templos são as árvores e as árvores são os
templos. De repente, num salto momentâneo de clarividência, entende-se o porquê
da geometria, o cuidado das direcções dos pontos cardeais, a simplicidade
piramidal que urge aos céus, e a reprodução em pedra das árvores nas fachadas
dos templos em grande escala – o que está em baixo está em cima, e a vida nada
mais é do que um pequeno trajecto terreno sempre com os olhos postos nos que já
lá em cima habitam. Estamos na terra mas de algum modo, acreditavam eles, o
importante era o que de lá de cima se conseguia ver cá para baixo.
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