(publicado pelo Jornal de Letras, Julho 2015)
Raquel Ochoa
viveu o último ano entre Paris e Sintra enquanto escreveu sobre a história
verídica de um harém marroquino perdido na Lisboa setecentista. A autora de “A
Casa-Comboio”, “Mar Humano” entre outros, acaba de lançar o romance histórico
“As Noivas do Sultão”. E conta-nos um pouco dele.
31 de
Dezembro de 2014
Passagem de
ano nas ruas de Paris. Bom champanhe. Já a fazerem a festa não há tanto talento.
2 de Janeiro
de 2015
Mas o início
do ano está salvo com a ida à Normandia, às praias do desembarque, passear-me
nos bunkers, olhar para o mar cinzento deste dia de Janeiro sem vento, e
imaginar nesse infinito o primeiro pintalgar de embarcações, a maior invasão,
as praias agora à espera de atenção de alguém a serem esventradas, abalroadas,
vidas perdidas como soprando grãos de areia, para acabar com a maior guerra do
mundo.
5 de Janeiro
Regresso a
Paris, regresso ao trabalho. Desde Outubro que escrevo “As Noivas do Sultão” ,
um romance histórico que me “obriga” a estar em frente ao computador 10 a 12
horas por dia, durante seis meses. O ritmo é intenso mas a história também. Há
histórias que ficam dois séculos guardadas num baú e quando são descobertas vêm
com uma força extraordinária. Esta gritou-me que queria ser contada e eu, mesmo
assim, ignorei-a mais de três anos. Por isso, quando lhe dei atenção, surgiu
sôfrega no desenrolar da narrativa. Atropelou-me muitas vezes, sem pena do
cérebro que lhe emprestei.
7 de Janeiro
Levanto-me
mais tarde que o habitual. Vou com garra para o computador decidida a escrever
muitas páginas, a dar andamento à aventura que se começa a desenhar, tirar de
apuros uns personagens e pôr outros ao barulho. Por isso mesmo não ligo à
orquestra de sirenes lá fora, embora mande uma mirada rápida à janela a ver se
a cidade não está a arder enquanto eu teimo estar na Lisboa do século XVIII.
Telefonam-me do outro lado da cidade a avisar que houve um problema ali perto
onde estou. De preferência que não se saia de casa. Vou à janela e a bandeira
francesa da Gare du Nord ondula indiferente aos carros de bombeiros e aos
carros de polícia, aos milhares de cidadãos que transitam apressados, à minha
procura por algo anormal na rua.
“As Noivas
do Sultão” são abandonadas totalmente nos próximos três dias. Eu bem tentei,
mas concentrar-me noutro assunto que não o estado de choque discreto que o
mundo ocidental viveu perante o massacre do Charlie Hebdo, falhava no primeiro
minuto.
11 de
Janeiro de 2015
O mundo
concentra-se na Place de la Republique. Desde o dia anterior estão estacionados
veículos de cadeias de televisão de todo o mundo, amuralhando a parte pedonal
da praça. Estou num autocarro que para num vermelho em frente a um directo para
a televisão holandesa. Imagino a jornalista a dizer que dali a poucas horas se
espera uma grande quantidade de gente neste local mas que por agora ainda só
televisões. Nem o câmara, nem a jornalista, nem eu imaginamos a quantidade de
pessoas que ali estacionariam dali a umas horas. Não foi uma enchente. Foi a
demonstração que uma multidão compacta pode manter-se em silêncio absoluto.
Descorçoada. Não sei como houve ar para tanto indivíduo.
1 de
Fevereiro de 2015
Já estou de
novo em plena labuta literária há algumas semanas. A trama traz-me desafios
inesperados. Mas antes disso, contar como me caiu ao colo tão escondida e
surpreendente história.
Dizem que a
sorte protege os audazes, e na mesma linha de conta, em algum livro do Paul
Auster lembro-me de ler que “ certas histórias só acontecem a quem vier a ter
vontade de as contar”.
Um dia, há
alguns anos, fui a Marrocos a convite do Instituto Camões. Acabara de conhecer
o leitor de Rabat, daquela época, Depois de conversa de circunstância, disse-me:
“Raquel, sabe, convidei-a para cá vir porque gostava que contasse um episódio
histórico que aconteceu entre Portugal e Marrocos e tem estado demasiado tempo
sem as luzes dos holofotes que merece”. E contou-me a história.
No final não
existiam dúvidas. O cérebro sabe reconhecer as pérolas. Havia qualquer coisa
naquela causalidade de acontecimentos que jamais tinha ouvido. Era verídica e
no entanto era desconhecida. Era épica mas no entanto nunca se tornara icónica.
Estivera escondida tantos anos. Com características empolgantes como Pedro e
Inês, com o mistério de D. Sebastião, com o misticismo de D. Leonor e as suas
rosas, mas sem espaço na memória popular… Porquê?
Disse-lhe
que sim. Um dia haveria de a contar. Na altura estava interessada em escrever
sobre outras coisas. E calei-me também eu mais uns anos.
4 de Março
de 2015
Enviei a
primeira metade para a Parsifal, editora deste romance. Agora já não há volta a
dar, o caminho é sempre em frente até encontrar o dia em que as concubinas
regressam a Marrocos.
A trama
reside na fuga da família real marroquina em 1793 de Casablanca para Rabat
aquando da guerra que grassava em todo o território. O sultão Abdessalam, ao
partir para a guerra em apoio ao irmão, julga não ficar em segurança a sua família
e respectivo harém, ordenando-lhes que embarquem e naveguem até ao porto de
Salé. Mas “os ventos empurraram o barco indefeso na direcção contrária, tantas
vezes a mais criativa do destino.” E foi já na Ilha da Madeira que encontraram
terra à vista, salvação para o desgoverno em que andavam há tanto tempo. Ali
puderam encontrar acolhimento, água, mantimentos, e quando se fizeram ao mar
novamente, lançavam a nau de novo às ondas, achando que a grande aventura
chegava ao fim. Longe disso, ainda agora começava.
Inexperientes
na arte de bolinar, cansaram o vento com tanta teimosia, e este empurrou-os
para os Açores, a tábua de salvação num Atlântico que por pouco não os engoliu.
Estava
resolvido. Aquela gente não tentaria dali passar para Marrocos. A única atitude
sensata, previu o Governador, era escoltá-los até Lisboa. Da capital do império
sim, conseguiria alcançar o seu destino. Dos Açores estavam condenados.
Nisto, já
havia passado tanto tempo, meses, e toda aquela tripulação a navegar em
condições sub-humanas, pouco interessava serem família real, a verdade é que a
viagem prevista era de dois, três dias no máximo.
Chegaram a
Lisboa em Julho e é aqui que começa a parte interessante, isto é, a partir
daqui interessou-me muito romancear.
15 de Abril
de 2015
Faltam
quinze dias para a entrega do manuscrito. Os meus olhos rolam nas páginas que
já escrevi. Falta o desenlace.
Determinada,
releio o relato de Frei João de Sousa, o monge mandatado por D. Maria I para
mediar todos os encontros com as concubinas, por ser fluente em língua árabe.
Frei João
escreveu uma descrição fascinante para aquela época, por detrás do tom formal
consigo ler-lhe os pensamentos, mesmo que tendo ocorrido há 222 anos.
Há
ocorrências inesperadas, mortes, doenças, nascimentos, pedidos repentinos.
As ruas de
Paris não suscitam nada em particular para esta história, mas a comida sim.
Afinal, estou na melhor cidade para comer do mundo. Frequento todos os
restaurantes que posso, como desculpa de inspiração. Esta vida não pode ser só
sacrifício…
30 de Abril
de 2015
A convite de
Porto Santo vou à Ilha para dar duas palestras. Estou uns dias na Madeira onde
acabo o romance e o envio ao editor Marcelo Teixeira. Imagino-as ali, perdidas,
com medo de sair do barco, sem imaginar que depois de passarem pela Madeira,
ainda há tanto para viver em Lisboa.
14 de Junho
de 2015
Cheguei
ontem a Lisboa. Percorrendo umas ruas na zona de Santos, vem do bailarico a
famosa canção “Voltei, voltei, voltei de lá. Ainda ontem estava em França e
agora já estou cá”.
2 de Julho de
2015
“As Noivas
do Sultão” é publicado e lançado em Lisboa. Exactamente 222 anos, exactamente
no mesmo mês de Julho.
No
lançamento relembro-me de como na última década passei tantas tardes na
Academia das Ciências a investigar para outros assuntos, ou quando lá estive a
entrevistar Adriano Moreira para “A Casa-Comboio”.
O relato de
Frei João de Sousa ali esteve sempre guardado, a sussurrar-me entre as paredes
da biblioteca. Andámos perto muito tempo, nunca nos encontrámos até ao dia em
que, pela voz de um português, nessa tal conversa rodeada de tajines e
cachimbos de água em Rabat – fervendo ela própria em ansiedade, me pediu para
vir à luz do dia.
E aí está. À
vossa disposição.
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