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A mostrar mensagens de 2009

Carrasqueira

Caminhar por cima da ria Não é mar nem é firme. Não é rio nem é pântano. É a ria no Estuário do Sado, que sobe e desce com o desejo das marés. Os pescadores, quando a água foge, saem com os seus barcos empurrados ao longo dos canais, à força da vara, qualquer semelhança com gondoleiros é pura coincidência. D. Isabel Maria chega de uma tarde afortunada. Esta ria dá o pão a muitas pessoas: da apanha pode-se voltar com um balde cheio de amêijoas, canivetes, polvos, raia… O seu sorriso para a fotografia é igual ao que largou quando pôs os pés no Porto Palafita, abandonando o barco que o marido ficou a atracar. Há uns anos ainda pensou em abandonar a arte, já tinha feito cinquenta anos e nessa altura até foi integrada num curso onde lhe ensinavam o novo ofício - saber armar arranjos de flores secas. Quando é interrogada sobre a idade deste Porto Palafita, necessita de fazer algumas contas com a memória: - Pois isto já tem para lá de muitos anos, foi na altura que a Catarina Furtado aterrou

Com Bana, em Santiago

Ilha de Santiago Saímos do aeroporto de Lisboa às 15h. O moço que nos acompanha faz-me um sinal estranho. Pergunto-lhe em voz alta qual a sua dúvida. Ele questiona timidamente: - É o Bana não é? - Bana ri-se. Confirmo. É assim todo o caminho. As hospedeiras do avião da companhia aérea, bem como os outros passageiros fazem uma expressão de surpresa quando o vêem. Cabo Verde surge no horizonte como um conjunto de luzes navegando no oceano. O clima em Santiago está muito quente e húmido, promete uma boa chuvada para breve. No dia seguinte tenho a oportunidade de conhecer Kim Alves, a quando da sua visita ao cantor Bana. Tenho curiosidade porque, além de conhecer algum do seu trabalho, é o único músico com quem Bana quer actuar, aqui nesta ilha. Capricho ou rigor? Não sei. O que é certo é que Kim Alves toca quase todos os instrumentos que há no mundo e construiu um estúdio em Santiago, apostando na valorização da música nacional. Noto também nele o disfarce da idade. É impressionante como

AS MONTANHAS DOS SHERPAS, O OXIGÉNIO DOS DEUSES

A subida ao Campo Base do Everest De Jiri a Kala Patar, o velho percurso que alcança o sopé do Everest, antes ainda dos aviões chegarem a Lukla até há uns anos, era o único e longo caminho possível para chegar ao Base Camp do Everest e Kala Patar, o local onde melhor se avista o ponto mais alto do mundo, sem o escalar. A riqueza que o turismo trouxe é distribuída de forma irregular e se em certas zonas em tempos se lucrou muito, hoje transformaram-se em periferias pouco procuradas. Himalaias, Kumbu Valley Namche Bazar aparece solarenga, os picos brancos gelados, e os verdes de mais baixa altitude, fecham-na em ovo, dispondo-a em anfiteatro que aproveita a encosta menos a pique. É uma vila de pedra, com telhados multicolores e movimentação nas ruas situada a 3440 metros de altitude. Comércio a alto custo para os milhares de turistas que aqui se acomodam durante o ano, é também o local ideal para uma primeira aclimatização à altitude. Todo o tipo de hotéis e requintes culinários podem se

De Jiri a Kala Patar, AS MONTANHAS DOS SHERPAS, O OXIGÉNIO DOS DEUSES

Caminhos de paciência O autocarro que demora oito horas a chegar a Jiri, sai de um terminal caótico e apinhado de gente. As imagens de pobreza e doença dos mendigos confiscam a beleza à cidade de Katmandu e impelem à busca das partes mais altas, mais puras, menos oxigenadas. Horas a ver montanhas crescer, a estrada tornava-se mais insignificante e atrevida. Uma noite de repouso em Jiri (1955 metros), uma aldeia de casas de madeira e comércio destinado apenas aos locais, recorda que este é o último ponto antes de se penetrar nas trilhas sem veículos motorizados. Mulheres avantajadas encostam-se às portas das suas lojas, sentadas em bancos, disfarçadas pela quantidade de material que as rodeia, esperando que alguém lhes dê conversa. Todo o material pesado ou de grandes dimensões, parece estar estacionado neste último armazém, à espera de ser levado para os montes isolados: mantas empilhadas, pás de agricultura, grandes bidões, sanitas “Indian style” ( latrinas), canos, roupa e cestas de

Himalaias, Kumbu Valley

A chegada a Bupsa dá-se ao fim da manhã e o alojamento acolhedor de Geljen Sherpa (todos os sherpas têm este apelido) ajuda a escolha de por ali ficar. Passados seis dias, uma tarde sem caminhadas. É uma casa de pedra com dois andares, janelas pintadas de roxo e um pátio-mirante, sem nenhum hóspede até então. Geljen é um homem de quarenta e poucos anos, bonito de porte atlético e a sua estalagem está cheia de referências às mais altas montanhas do mundo; não só o maciço do Everest como também o K2 (Paquistão) e Kangchenjunga, a terceira mais alta (que faz fronteira com Sikkim, na Índia). Percebe-se rapidamente que a sua relação com as montanhas está para a além dos lindos posters que enfeitam a sala de estar. “Subi-o em 2005. Foi o monte Everest que me deu a oportunidade de construir esta casa.” – menciona de sorriso discreto. O Governo nepalês contempla os cidadãos nacionais com cerca de 10 000 euros a quem “conquiste” a mais alta montanha, uma pequena fortuna que permite começar a vi

De Namche Bazar ao miradouro do Everest

Faltam 4 ou 5 dias para Kala Patar, no mínimo. Estão reunidas forças e mentalização, fruto da climatização seguramente, para subir a grande escadaria que é a porta de saída de Namche Bazar. O caminho continua em direcção aos picos mais altos e logo ao sair do anfiteatro formado por Namche, é possível avistar montanhas tresmalhadas sem dono, isoladas e obstinadas, pouco tempo sem a companhia das nuvens. É aliás pouco depois que se avista claramente o pico do Everest, por detrás de uma Stupa branca, com dois olhos minuciosamente desenhados, hipnotizados pelas bandeirolas esvoaçantes. Aparece disfarçado pelas suas montanhas familiares, rodeado e protegido, um cume até insignificante, dá ideia ao princípio. As nuvens aparecem a meio da manhã, apoderam-se das vistas magníficas e obrigam quem por ali anda a focar paisagens mais próximas. O número de turistas aumenta consideravelmente a partir de Namche, a esmagadora maioria chegou via Lukla. Mulheres, homens e adolescentes nepaleses carregam

Ilha de Sto Antão - A TEIMOSIA DE EXISTIR

Em pleno Oceano Atlântico, uma ilha do arquipélago de Cabo Verde destaca-se das demais pela sua morfologia e latitude. As suas gentes, desde há séculos enfrentam o desafio de viver em condições acrobáticas, pendurando-se nas serras e transpondo-as com a força de uma comunidade. Encaram-se os dias. Os pais vão ensinando algo aos filhos: a teimosia de existir. As gentes de S. Antão, são um povo escalador e teimoso, as casas são construídas tendo como arrimos certos blocos de rocha, ou encavalitadas nas encostas, perseguindo as estrias vincadas da montanha. Muitas choupanas também se equilibram em confluências de rochas, encaixadas em grandes aberturas de grutas. As reentrâncias na terra, quando largas, servem de estábulo aos burros, ou de depósito de colheitas. À medida que se vai avançando pelo Paúl acima, torna-se mais claro o esforço dos camponeses desta terra: os socalcos são construídos em locais impensáveis, permitindo hortas verdadeiramente suspensas, culturas às prateleiras que q

Mar di Canal - Ilha de Sto Antão

No porto de S. Vicente aglomeram-se as pessoas prontas para mais uma travessia do mar di Canal. O Atlântico não brinca em dias de ventania mas hoje, o mar anuncia uma especial viagem de altos e baixos. O barco Ribeira do Paúl, com capacidade para 160 passageiros, recebe os de hoje através de uma escada ondulante ligada ao cais. Começa a viagem até S. Antão, o barco distancia-se da terra com a ligeireza de uma tartaruga, pequena face ao oceano, robusta face aos golpes da viagem marítima. No mar di canal a história de naufrágios é tão longa como a memória de aqui viver. O Ilhéu dos Pássaros, uma rocha plantada no meio do canal, faz as vezes de bússola, depois dele são uns 40 minutos a navegar com dois territórios insulares à vista, mas estranhamente distantes devido à força das correntes. S. Antão é a última (ou a primeira) das ilhas do grupo do Barlavento. S. Vicente sempre a usou de celeiro. Por sua vez, de S. Antão imigra-se para a cidade do Mindelo, em busca cultural e comercial. Exi

Ilha de Sto Antão - Falésias e Trapézios

Falésias e trapézios Atravessa-se Ribeira Grande à hora de saída dos quase três mil alunos do Liceu Lizete Delgado. Dispersam-se pela cidade e pelas montanhas, trepando os inóspitos desfiladeiros. Segue-se viagem para Chã da Igreja. Nhô Silva, um dos quinze passageiros que viajam na “Hiáce” aproveita a viagem para desabafar as suas preocupações, com peculiar sentido de humor: -“ Os chineses e as lojas deles já não me enganam mais vez nenhuma. Comprei lá umas sandálias que duraram dois dias. – Já viveu em Portugal muito tempo, trabalhando na construção civil. De facto, como em muitos outros locais do mundo, também em Cabo Verde as lojas chinesas imperam a cada esquina. - Já cheguei à conclusão que mais vale comprar dez camisas logo de seguida nas lojas dos chineses para as ir substituindo conforme se rompam. - remata. As conversas tornam-se impossíveis com o ranger dos travões nas descidas até Chã de Igreja, já bem junto ao mar. De Chã de Igreja a Cruzinha, uma pequena aldeia piscatória

Sikkim - O escondido Reino Himalaia

Os vistos e permissões são carimbados em Siliguri, a entrada no 22º Estado da Índia está assegurada. O segundo estado mais pequeno e o menos populoso está encostado ao Tibete (administrado pela China), ao Nepal e ao Butão e a sua história é de invasões e tratados de paz, Budismo e Hinduísmo que à mistura se foram adaptando às encostas escarpadas e profundos vales neste recanto de Himalaias tropicais. O clima oscila entre temperado, tropical e alpino, uma vez que a altitude varia entre os 280 metros e os 8590, mas Sikkim é diverso em vários outros aspectos, a população reparte-se entre lepchas, bhutias, e nepaleses, o que, culturalmente, triplica o interesse da região, sobretudo por conviverem pacificamente. Residem outras comunidades de emigrantes, nomeadamente tibetanos, sobretudo no Norte e no Oeste do Estado. O autocarro apinhado dirige-se a Gangtok, as sucessivas paragens devem-se aos desvios improvisados que escapam aos destroços das enxurradas da estação das chuvas que lamberam v

Sikkim em troca do Tibete

Rumtek é uma fiel réplica das instalações de Kagyud, no Tibete. Muitos dos fiéis são tibetanos. Muitos dos tibetanos encontraram em Sikkim o início de uma nova vida, bem mais próxima da antiga realidade do seu país do que a actual realidade da colonização chinesa. O Namgyal Institute of Tibetology, por exemplo, é um prestigiado centro de tibetologia com uma rara colecção de manuscritos sânscritos, tibetanos e lepchas onde se podem observar mais de 200 objectos de arte budista que encantam os visitantes. Em 1947, uma consulta ao povo teve como resultado a decisão de Sikkim não se juntar à União Indiana, recentemente tornada independente da Grã-bretanha, pelo que o primeiro ministro Jawaharlal Nehru concordou que Sikkim seria um protectorado com um estatuto especial. Em 1973, motins em frente ao Palácio Presidencial pediam protecção formal à Índia, descontentes com as opções do Chogyal (líder político) e em Abril de 1975, através de um referendo que obteve 97,5% das votações a favor, Sik

Peru - Os carregadores dos Andes

Quem opta por chegar a Machu Pichu através do caminho inca, num trekking de três dias, cede muitas vezes a passagem a homens que levam tudo às costas. Correm em vez de andarem e transportam cargas à primeira vista impossíveis de suportar. São os carregadores dos Andes. A bruma aparece subitamente. Nada a fazia prever num céu descoberto e de um azul total até há cinco minutos atrás. Muito menos que as montanhas aqui em frente iam desaparecer do campo de visão. “Porter!!”- ouve-se gritar com força. É a palavra-passe que todos os turistas entendem e significa a obrigação de dar passagem a alguém que aí vem carregando o dobro da carga, caminhando ao dobro da velocidade. Carlos, Francisco, Sábio e Pepe são uma equipa de carregadores formada para levar a cabo mais um trekking nos Andes. As suas idades variam entre os 39 e os13 anos. São oito os estrangeiros que vão acompanhar desta vez, a maioria da Europa, uma mexicana e um chileno. Os quatro já caminham lestamente em fila indiana. Acabaram

Ganhar a vida a subir montanhas

Este é um povo que sempre viveu nos rigores da altitude, dos climas definidos e incontornáveis. É assim nos Andes, nos Himalaias, no Atlas, e em todas as grandes cadeias montanhosas. Pessoas com uma capacidade de trabalho impressionante. Viajando de autocarro pelo Peru, é frequente encontrar-se casais de pessoas já idosas, acompanhados pelas suas enxadas, catanas, e grandes sacos de sementes, descendo nos sítios mais improváveis, campos no meio de montanhas sem horizonte de área habitada num raio inarrável, e ali passam o dia, quem sabe a noite, talvez semanas, até voltarem a casa com esperança de que este ano haja uma boa colheita “por altura do Domingo de Ramos”. Os carregadores são desta “raça”, homens e adolescentes para quem a montanha significa os únicos horizontes possíveis, a fonte de subsistência, o retiro espiritual, o sacrifício diário. No Peru a maior parte da população do interior vive da agricultura. O turismo em ascensão que despoletou nos últimos anos uma economia quase

Peru - Espírito semi-indígena

Sábio Lopez é o primeiro a levantar-se, tem 39 anos e quem mais experiência como carregador. Desde os seus vinte que percorre estes trilhos: “Já vi mais europeus, norte americanos ou australianos, do que peruanos ou sul-americanos. Mas conhecer, conhecer, falar com as pessoas e elas comigo, lembro-me de cinco ou seis.” Afirma desatando os atilhos da sua carga, todos enrodilhados à volta de um oleado que abriga todo o amontoado de coisas que ali são trazidas. Ao volume que cabe a cada um, improvisam-se umas alças daquele material também, que o liga ás costas, embora de uma forma totalmente precária, suportando exclusivamente o esforço nos ombros. O facto de Sábio não ter convivido com muita gente de outros continentes, explica-se sobretudo pelo seu castelhano ser quase inexistente, não saber escrever uma palavra e não falar nenhum outro idioma a não ser a sua língua, o quechua: “Nunca fui à escola, mas não saber ler ou escrever não me impediram de ganhar a vida”. É como interpreta o seu

Andes - Os Guardadores da montanha

Os parques naturais do Chile são a porta de entrada para a magia dos Andes. Para aceder à cordilheira, é preciso conhecer dois homens que dão as boas-vindas e as coordenadas a quem se propõe a explorar tais caminhos. Clement Lauffret, 60 anos, e Victor Marquez, 19, são os guardas florestais dos parques naturais de Altos del Vilcray e Torres del Paine, respectivamente. Versões distintas da mesma militância. Sentado na sua secretária de madeira de carvalho, D. Clement Lauffret, não desvia a atenção dos milímetros específicos que observa no mapa. É o Parque Nacional Altos del Vilcray que D. Clement administra há 12 anos e onde vive permanentemente. Situa-se no centro do Chile, paredes-meias com o mais conhecido Parque Nacional de Las Siete Tazas, uma estrutura geológica de granito por onde a água cai em cascatas, “de taça em taça”. Siete Tazas e Altos del Vilcray partilham a linha da cordilheira dos Andes que os atravessa e a intensa fauna que percorre todo aquele espaço em movimentos mig

Andes - Montanhas e cordilheiras para contar

D. Clement repete várias vezes que refastelar-se numa poltrona na sua idade é um perigo, usando a recorrente ironia que lhe dá um traço misterioso. Trocou a família pelas montanhas há cerca de 20 anos, quando se tornou funcionário da CONAF, o organismo que gere as reservas ecológicas do Chile. A sua relação com a montanha é porém muito mais antiga. Depois de ter subido e escalado todas as montanhas do Chile, Peru, Bolívia, Argentina - navegando de Norte a sul pela cordilheira dos Andes - rumou à Europa. Não satisfeito com os Alpes, fez duas viagens ao Nepal. Uma foto de um pico gelado de 8000 metros do Maciço de Annapurna, nos Himalaias, ocupa lugar de destaque na sua sala, precisamente sobre o umbral da lareira. Mas há outras, uma foto a preto e branco nas montanhas de Bariloche (Argentina, Patagónia-norte), como um sorriso de criança e satisfação. Outra enquadra-o numa paisagem do Monte Branco, com um rosto a dar as boas-vindas às primeiras rugas e um olhar mais longínquo. As estante

Andes - Torres del Paine, na ponta sul da cordilheira

A muitos quilómetros dali, não longe da Isla Grande de Tierra del Fuego, o sítio mais a sul do continente, Victor Marquez prepara um café. O pó é retirado de uma embalagem que originalmente foi de chocolate quente, mas este guarda-florestal preveniu-se contra as suas próprias distracções e colou-lhe uma tosca etiqueta com o nome do conteúdo actual. Tudo é demasiado precioso para ser desperdiçado, uma vez que, para estarem ali, foram carregados às costas durante algumas horas, portanto os mantimentos ali existentes são os imprescindíveis. Victor tem 19 anos, pouca paciência para a escola ou uma imensa paixão pelas duas facetas opostas daquele parque e daqueles montes: o convívio e a solidão. Nasceu em Punta Arenas onde reside nos seus cinco dias de folga, que acontecem a cada 12 dias de trabalho. Punta Arenas é a maior cidade do extremo sul chileno, e fica a 3 horas de autocarro de Puerto Natales, a cidade mais próxima do Parque Nacional Torres del Paine, um dos parques naturais mais co